Um dos filósofos mais renomados no mundo atualmente e transexual declarado, o espanhol Paul B. Preciado afirmou que o longa-metragem Emilia Pérez é "carregado de racismo e transfobia".
A produção dirigida pelo francês Jacques Audiard é uma das mais badaladas da temporada atual de prêmios e tem sido muito criticada tanto pela forma como trata o México quanto pela maneira que aborda a transexualidade.
"Enquanto alguns já ilustram as estatuetas do Oscar de Emilia Pérez, último filme do diretor francês Jacques Audiard, eu vim para queimar os Oscars e salvar Emilia, todas as Emilias do México, da violência da indústria cinematográfica", escreveu Preciado no início de seu texto publicado no El País, jornal mais famoso da Espanha.
No longa, a atriz espanhola Karla Sofía Gascón, que é transexual, vive um traficante mexicano que transiona de gênero, o que o ajuda a fugir das autoridades.
Em entrevistas, Audiard afirmou que o pouco que ele conhecia do México era o suficiente para fazer o filme. Uma das produtoras disse que abriu testes para atrizes no México, mas que não encontrou nenhuma boa o suficiente. Essas foram algumas das falas mais infelizes dos envolvidos na produção que gerou ódio entre os mexicanos.
"O filme de Audiard conta, segundo sua própria descrição, a história de Manitas, um maldito traficante mexicano que muda de gênero e se transforma em Emilia para tentar escapar de seu destino. Embora seja apresentada como o resumo do cinema moderno repleto de números musicais e invenções visuais e narrativas, Emilia Pérez é, quando se conhece a história das representações de pessoas trans, um pergaminho de ruínas semióticas coloniais e binárias tão previsíveis quanto anacrônicas", continua o filósofo.
"Ao curvar-se às exigências de um cânone narrativo hegemónico que tem sido contestado por grupos e pelas próprias pessoas trans e racializadas, Emilia Pérez perpetua uma visão psicopatológica da transição de género baseada em quatro premissas: criminalização, exotização etnográfica, representação médica-cirúrgica da transição de género e assassinato. E este último não é um spoiler. Todos os filmes normativos sobre pessoas trans acabam matando o protagonista."
Preciado prossegue: "A história de Emilia Pérez faz parte da genealogia iniciada por Hitchcock em Psicose (1960) e continuada posteriormente por Brian De Palma em Vestida para Matar (1980) e Jonathan Demme em O Silêncio dos Inocentes (1991), em que, invertendo os papéis de o culpado e a vítima, a mulher trans é representada como uma assassina, uma psicopata frustrada (e enfatizo aqui o gênero masculino já que todos esses filmes nos apresentam primeiro a mulher trans como 'um homem') que busca vingança."
"A diferença é que esse assassino não quer mais vingança, mas sim redenção: em vez de matar para se tornar mulher, o assassino do filme de Audiard se tornará mulher para tentar parar de matar", analisa o filósofo.
"O filme nos apresenta a pessoa trans como necessariamente estrangeira e estranha, como o radicalmente Outro, aquele que não pertence à nossa cultura nem fala a nossa língua. O diretor francês Audiard leva esse processo de alteridade ao limite ao transferir a história para o México e tornar o idioma do filme o espanhol mexicano — apesar de o filme ter sido inteiramente rodado nos arredores de Paris, com atrizes que não sabem ou não falam espanhol com sotaque mexicano. A extraordinária Karla Sofía Gascón é (apesar de ter passado anos no México) espanhola, Zoe Saldaña nasceu e cresceu no Queens, Nova York, e Selena Gómez é tão norte-americana que não consegue pronunciar a palavra 'pinche' sem ficar presa na a boca dela."
"Carregado de racismo e transfobia, de exotismo antilatino e de binarismo melodramático, Emilia Pérez reforça assim a narrativa colonial e patologizante não só da transição de género, mas também da cultura mexicana."
A trajetória de sucesso de Emilia Pérez começou no Festival de Cannes, em maio, quando o filme levou o Prêmio do Júri e a Palma de Ouro de melhor atriz para quatro intérpretes - Gascón, Zoë Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz.
No último domingo, o longa venceu quatro estatuetas no Globo de Ouro - melhor filme de comédia ou musical, melhor filme em língua estrangeira, melhor canção e melhor atriz coadjuvante (Saldaña).
Assim como bateu Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, do Brasil, no Globo de Ouro, é esperado que ele seja o favorito na categoria de filme internacional no Oscar. A produção também é cotada para ser indicada a várias outras categorias, tais como filme, direção (Audiard), atriz (Gascón), atriz coadjuvante (Saldaña), roteiro adaptado e canção (com duas representantes).