Por Marcio Claesen
Diz o ditado que o bom filho à casa torna. Mas e se ele voltar com uma vasta cabeleira, um corpo cheio de curvas e um nome feminino? É isto, de certa forma, que ocorre em A Graça e A Glória, longa que chegou aos cinemas nesta quinta-feira 30.
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No filme de Flávio Tambellini, Graça (Sandra Corveloni), dá um duro como massagista terapêutica para manter os dois filhos, uma criança e uma adolescente, até descobrir que uma doença fatal vai lhe tirar a vida a qualquer momento. Graça percebe, então, que sua melhor opção é reativar os laços cortados com Luiz Carlos, irmão com quem não fala há 15 anos, para que ele assuma a criação de seus filhos quando ela se for.
Mas Luiz Carlos virou Glória (Carolina Ferraz), já passou um tempo na Europa e agora possui um restaurante badalado em Santa Teresa, na Zona Central do Rio de Janeiro. A transexualidade da personagem não é a única coisa com a qual Graça precisa lidar. As duas têm contas antigas em aberto e ficam no limiar de uma explosão, o tempo todo entre um perdão definitivo ou uma nova ruptura.
As situações entre ambas são críveis, mas pouco exploradas. Os diálogos - que acertam em situações cômicas - ficam a dever nos momentos dramáticos. Corveloni, excelente atriz do teatro paulistano e que levou a Palma de Ouro em Cannes (pelo filme Linha da Passe, 2008), tem ótimos momentos, mas ainda assim poderia ser melhor aproveitada.
À câmera de Tambellini prevalece mesmo Carolina e sua Glória. Luminosa, a personagem ressalta um grande timing da atriz para o humor, mas mais do que isso, deixa nítido um belo trabalho de composição, algo difícil de poder alcançar em novelas, entre gravações que se sucedem loucamente.
Com uma prótese na boca, que ajudou a deixar traços andróginos em Glória, Carolina contou à nossa reportagem como lidou com o universo da transexualidade. "Colhi 60 depoimentos de trans do Rio e de São Paulo, e, além disso, tive dois preparadores excelentes, Christian Doouvort e Marina Medeiros. No filme, tive o prazer de contracenar com a Carol Marra [atriz trans que vive a melhor amiga de Glória], de quem me aproximei bastante e pude absorver muito."
Mulher cis em papel trans
Sobre as críticas de ser uma mulher cisgênero em um papel trans, que apareceram na internet antes mesmo da estreia do longa, Carolina diz entender e defender a legitimidade da luta por parte das trans por seu reconhecimento pessoal, social e profissional, mas ressalta que a visibilidade do tema é tão importante quanto.
"Assino embaixo dos seus direitos", explica. "Porém, o intuito do filme é justamente retratar um universo diferente do que usualmente vemos nas mídias. Existir um personagem trans como protagonista de um filme, em tempos de retrocesso, em qualquer forma de arte que atinja o grande público, deveria ser comemorado. Eu e Flavio batalhamos pelo projeto, fizemos entrevistas com dezenas de trans e fomos recebidos de braços abertos por todas. Não emprestei meu corpo de mulher cis para viver a Glória, emprestei a minha alma feminina e meu coração. Nossa intenção com o filme foi contribuir com a discussão de gênero, jamais o contrário", diz Carolina sobre o filme que há quase uma década lutou para realizar.
Sandra faz coro à batalha para tirar o longa do papel e minimiza essa discussão. "Quando as pessoas assistem ao filme não sabem quanto tempo levamos para conseguir produzir, nove anos se passaram desde que recebi o roteiro, nove! Muita coisa mudou, ninguém queria dar dinheiro, ninguém queria falar disso. A Carolina, que também é produtora do filme, batalhou demais por ele, sem ela o filme não aconteceria e ele aconteceu, o que é maravilhoso, porque independente de quem faça o papel, o filme coloca uma travesti em destaque, sem estereótipos, uma mulher madura, que é dona da sua vida, os problemas estão lá, mas não são o foco principal da história."
O longa, que retrata uma nova configuração familiar, carrega (literalmente) nas tintas dos cenários, sublinha desnecessariamente alguns diálogos e sufoca suas personagens com muitos closes e poucas imagens do Rio, mas tem um acerto que ninguém pode lhe tirar: duas grandes atrizes. Carolina, em especial, está radiante, competente, almodovariana. Um papel que lhe tirou da zona de conforto como há muito não se via (talvez desde a Lucinha do remake de Pecado Capital, de 1998). Ela é a glória e graça desse longa que merece ser conferido.